quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Cheira como espírito adolescente

Vinha o caminho inteiro com um palavrão entalado na garganta. Tinha virado a cara para a janela, mas nela só podia ver meu próprio reflexo- o que me remetia àquela pessoa que eu amaldiçoava em silêncio.

A cada semáforo em que parávamos, a cada freada brusca do barulhento jipe , tentava não me esfarelar. Era tão ridículo tudo aquilo, aquela encenação hilária de um aparente entendimento. "Então está certo, melhor assim". Não estava certo, era pior assim.
Pronto. Rodoviária, abriram-se as portas, tchau, vá com Deus , o jipe partiu.
Saí andando rápido, com uma mão tentando proteger a bolsa e com a outra seguro a sacola- há um homem morto em minha sacola.
Subi as escadas, ou melhor, me arrastei escadas acima. Comecei a ofegar, não sei por quê, pernas bambas, me falta ar, me falta muito . Páro um pouco perto de uma coluna suja de cimento queimado. A sacola pesa, pesa muito, há um homem morto em minha sacola.Logo percebi que não mais poderia ficar alí, me observam. Preciso ir embora, preciso muito sair daquele inferno- é essa a melhor palavra para descrever a situação, já que dividia a cena com um rockstar morto dentro de uma sacola laranja.

Não me lembro se estava só ou acompanhada, àquela altura já não via quase nada. Tentava manter a compostura, tinha um rockstar morto em minha sacola. Só queria comprar aquela passagem e sumir dali, sumir pra sempre e mandar à merda quem quer que fosse que estivesse em meu caminho, e, de fato, aquele cobrador um tanto estrábico com sotaque nordestino estava em meu caminho.
-Arujá, seis e meia - gritei.
Ele parecia não me entender, e eu era capaz de qualquer coisa. Já carregava um rockstar morto em minha sacola, qualquer adendo não seria peculiar à minha situação. Não sei porque não saí daquele guichê e fui para outro. Talvez assim não teria cedido involuntariamente cinco reais a um funcionário anencéfalo que não merecia mais que um insulto como gorjeta.

Tinha que correr, já eram 6:25, e como sempre tive um senso de direção magnífico como o de um perdigueiro morto, havia grandes chances de me embrenhar naquela selva de pessoas para lá e para cá carregando componentes de seu individualismo amarrados em carrinhos de feira até os mais diversos destinos.
Eu odiava a mim mesma , sentindo que eu nada mais era, naquele momento, que a extensão do corpo de um indivíduo a quem eu odiava tanto. Queria mais que as catastróficas expectativas dos cientistas radicais se completassem naquele momento, e que a Terra se explodisse sem deixar vestígios de que, um dia, a minha consciência sequer existiu.
Por mais que fingisse negar o fato de que havia sido gerada por um ser abominavelmente cruel e detestável aos meus olhos , no fundo o que mais queria era que ela sofresse uma duplicação e que sua cópia se tornasse aquela mãe que eu conhecia na infância , e então, ao chegar em casa, pudesse ter onde me esconder e , por um segundo, não pensar em nada do que havia acontecido naquela tarde.

Chego à plataforma 6 (esse número parecia me seguir, dispenso análises de símbolos ).
São seis e trinta e cinco, o ônibus nem havia chego, segundo o cobrador que esperava sentado num banquinho. Hesitei um pouco. Este homem sustentava traços muito semelhantes ao cobrador de dez minutos atrás, além de o sotaque ser o mesmo. Semelhanças regionais, pensei.

Encostei na grade verde, que por estar cheia de fuligem sujou toda a minha camiseta. Achei melhor desencanar, ia acabar perdendo o juízo e agindo irracionalmente. Peguei os fones de ouvido, e como uma denúncia de que aquele meio era inferior à minha condição seria um ato suicida, não escolhi a música que queria ouvir.
Após alguns minutos, me surpreendi sendo embalada pela voz do rockstar morto. Chequei a sacola, ele ainda estava lá, mesmas feições de sempre, apenas um pouco amassado por conta da sacola em que eu o carregava. Uma negação, uma negação, uma negação- era o que ele me dizia, sem parar. Realmente, aquilo estava se tornando mórbido. Tive um quase incontrolável ataque de risos , que inutilmente tentava esconder por trás da manga de meu casaco, batia um ventinho frio típico do começo da noite. O riso tonou-se histérico, assustador e histérico. Estava gargalhando em plena rodoviária, e várias senhoras acima do peso, de cabelos cujas raízes escuras desmentiam a cor dos cachos amarelados e rodeadas de crianças comendo salgadinhos de sacos maiores que elas mesmas me olhavam como se eu houvesse desligado a tv na hora da novela da Globo.
O ônibus chegou, finalmente. Já quase me esquecia porque estava lá. Dei a passagem ao cobrador, que depois de analisá-la, subui os olhos até mim, e eu o fitei como se ele também houvesse me roubado cinco reais.
Sentei bem no fundo. O riso estava adormecido sob minha pele, e logo um turbilhão de emoções me acometeu. Não estava chorando. O choro é um alívio, é uma descarga, é um sentimento.Eu estava transbordando, e me contaminava pelo chorume maldito em que minha lágrimas se haviam convertido.Aumentei o volume da música.O rockstar morto era o único que podia me exorcizar naquela hora.

Olhava pela janela, o ônibus quase vazio lentamente deixava a marginal e eu parecia me acalmar aos poucos. Sentia-me como num final de festa, qualquer que seja o significado disso.O vidro não refletia a minha imagem- essa parecia ter se apagado no momento em que me livrei daquelas gargalhadas que possuíam minha alma. Agora elas estavam soltas pelo ar, esperando encontrar alguém tão frágil quanto eu, de quem pudessem assenhorear-se.
Sabia que mais cedo ou mais tarde teria que enfrentar aquele monstro do qual eu fugia. Querendo ou não, ela me forçaria a admitir erros que, na verdade, haviam sido de nós duas.Teria de enterrar o rockstar, junto daquela rebeldia apodrecida que começava a contaminar minha alma.

A viagem mal começara e eu já estava de volta ás ruas quietas da cidade que ,por um golpe do destino, eu chamava de minha. O calçamento preto e branco encardido imitava o da metrópole, porém nada naquele projeto de avenida podia se comparar à velha cortesã que São Paulo era.
Agarrei a bolsa que deslizava por meu ombro, a sacola...?Sairia correndo atrás do ônibus se realmente não houvesse qualquer foco de hesitação em mim. Podia comprar outro pôster em qualquer lugar.

Me coloquei a andar, lentamente, rumo àquela luz amarelada vinda do único comércio ainda aberto. Parecia uma luz no fim do túnel, que provavelmente desembocaria no lugar onde menos queria estar, mas talvez fosse aquele o meu paraíso.

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