-Poderia encher as duas mãos a quantidade de amigos que tenho, se antes amputasse todos os dedos.
-Não sou sua amiga, seu Afonso, replicava a velha arrogante.Cê me paga, eu trabalho.
Balançava a cabeça avermelhada, barba por fazer, os poucos cabelos restantes eram espetados e prateados, como vários alfinetes picando seu couro cabeludo. As pernas magras e brancas, assim como o resto do corpo, pés ossudos enfiados na chinelinha de couro comprada na feira. "Inferno!" bradava ele, e depois mirava uma escarrada do outro lado do muro. Algumas vezes, esmurrava o parapeito de metal descascado , enferrujado e pintado de cinza.
D. Mirtes, que por razão desconhecida sentou-se numa cadeira perto do patrão, avisou-o que não destruísse o pouco que havia sobrado daquela casa.
-Pouco me importa!Para ser franco, nada no mundo me importa!Quê faço eu aqui, na mesma varanda imunda de sempre, depois do que aconteceu comigo?
A velha não respondeu , não porque já havia se habituado aos constantes impulsos de inquietação do homem; permaneceu em silêncio porque não sabia o que falar e tendo ela sofrido da mesma fatalidade que Afonso , também não podia prever seu destino.
O homem subiu no parapeito, ameaçou jogar-se, mas depois de lembrar-se que teria de subir onze andares e continuar com o mesmo problema não resolvido, decidiu sentar-se na cadeira branca de plástico. Havia um silêncio tenebroso, embalado de distantes latidos de cachorro e de carros trafegando.
- Quer saber, vou rezar. Tem um terço aí, Mirtes?
A mulher olhou com máscara de sarcasmo, perguntou se tinha cara de Virgem Maria.
Ele chegou ao quarto pequeno e abafado, ligou o ventilador, acendeu dois cigarros e colocou-os na boca. Ajoelhou-se ao pé da cama, cruzou os dedos e começou. Pediu a Deus que perdoasse todos os seus pecados, enumerou os que julgava mais graves , dentre eles a vez em que explodiu (literalmente) o gato de D. Mirtes. Explicou que a vida havia sido daquele jeito por causa da mãe , que o expulsou de casa aos dezesseis anos, isso somado ao fato de não ter concluído a escola , pois tinha dislexia porque não havia mamado quando bebê. Pediu que o absolvesse e o levasse em breve ao reino dos céus, onde os homens de bem descansavam. Fez uma pausa, esperando que uma raio de luz branca o iluminasse e ocorresse a ascensão, o que não aconteceu. Disse que adoraria uma confirmação da existência divina por meio de um sinal . Não sei se foi uma manifestação em resposta , mas uma frigideira atingiu-o na cabeça. Era D. Mirtes, dizendo que já tinha quase certeza de que fora ele o assassino de seu gato angorá.
- Vou te matar, seu desgraçado!-Já estou morto, assim como você.
Muito legal teu texto... Começou com o pé direito... Parabéns...
ResponderExcluirhttp://palanquinho.wordpress.com
P.s.: Cookies e Sex on Fire é a melhor combinação do fim de 2008.
ResponderExcluirbj
Dava par ir para uma revista, te juro. As crônicas que eu leio na Bravo não são tão diferentes das suas, ás vezes até nem tão boas.
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