domingo, 30 de setembro de 2012

Em Flama


-Eu quero ser alguém mas você me consome.
Antes você era o fósforo que eu acendia no comecinho da noite, naquela hora em que começa a ficar escuro e a gente ainda não quer acender a luz. Com você eu nunca quero acender a luz.
Hoje eu mergulho em gasolina e peço pra você me queimar. Transfiguro-me  em capim seco pra você se alastrar em mim e não deixar uma só folha. Eu te quero acabando comigo porque eu mesma não tenho coragem de fazer isso. Já me matei muitas vezes, mas prefiro o seu jeito. O seu jeito que me deixa sempre queimando, mesmo quando você não está. Quando você se apaga, sem eu ver deixa uma centelha queimando a semana inteira. Eu só percebo na quinta ou na sexta, quando vejo meus dedos escuros como carvão e meus olhos vermelhos.
Por isso eu quero que você me queime: porque eu não consigo mais me incendiar sozinha.


Impressionava-se com seus acessos de lucidez (e nem sempre de uma boa maneira).
Mas ele sabia quem nem a ela lhe agradava ouvir o eco do que dizia nessas horas, então nem se importava.
- Você fala como se a gente tivesse uma química incrível.
- E não tem?
-Heim? Mas a gente nunca...
- Eu não estou falando de sexo.
-Você sempre está falando de sexo.
-Agora não estou.
Continuou o cigarro pelo qual tanto batalhara para gostar. Não gostava. Era só aquele gosto amargo na boca e o segurá-lo entre dois dedos que a faziam sentir-se gauche. E quando o resto todo da vida estava muito droite, ela fumava pra ser gauche. Pra dizer que alguma parte em si ainda acreditava ter alguma coisa pra tirar de dentro- mesmo que fosse só fumaça.

-A gente se entende.
-Não acho.
-Mudou de ideia? Não quer mais que eu te queime?
-Idiota.
-É sério, por que você acha que a gente não se entende?

Precisava da gauche. Fez uma pausa pra construir uma muralha de fumaça que mais ficou parecendo uma cerquinha de  arame farpado.

-Porque se a gente se entendesse... parou.  Se a gente se entendesse, a gente nunca estaria junto. Mas a gente fica junto o tempo todo porque sempre quer convencer o outro de que está errado.

Ele ouvia a voz dela por cima das cigarras em vibratto.

-É que nem carrapicho, sabe? Ele só gruda na calça porque tem atrito.
-É, bem que você é chata que nem um carrapicho.
-Vai se... foi interrompida.
-Eu entendi, carrapichenta. Eu entendi, mesmo a gente não se entendendo.

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