domingo, 29 de julho de 2012

Mariposas antitéticas


O homem nasce só e morre só. Sabendo disso, a humanidade criou os mais diversos subterfúgios para amenizar essa solidão. São como pequenas peças em que se encena  a família, o casamento, as alianças, clubes, sindicatos, feriados. Todos nós somos os atores. E a prova maior de que essa vida inventada é um espetáculo inconclusivo é a morte. É uma última apresentação de temporada  sem o ator principal. Velórios são óperas sem uma prima Donna.
Se é, então, a vida  um espetáculo  inventado para plateia nenhuma, qual seria a razão de fingir? 


Eram ambos daqueles jovens cujas consciências agregam-lhes uns anos.  O sofrimento dele era não saber o que havia fora dali e evitar pensar no assunto. O dela, porém, era saber. Ela sabia— no mínimo sentia que o sabia— como o mundo seria e tinha medo, muito medo.

Haviam passado aquela sexta-feira na cama. Ela, assistindo qualquer coisa que a fizesse esquecer que existia. Ele, jogando videogame.
Por motivos diferentes, eram sós. Tinham família, amigos, amantes. Mas eram terrivelmente sós ao mesmo tempo em que não lhes fazia sentido fazer qualquer coisa sozinhos.  Enquanto ele, ao andar só por algum espaço aberto, atendia cegamente às borboletas que se debatiam em seu abdome e faziam-lhe voltar para casa, ela tinha vontade de ir ao banheiro. E também de chorar, mas isso não lhe acontecia havia muito tempo.
 Ao ser chamada, jocosamente, de “coração de pedra” por amigos , parte de si acreditava realmente não saber ter emoções. Outra parte,porém, aquela que geralmente está certa mas à qual nunca damos ouvidos, sabia que em seu coração havia um dique, uma barreira forte, densa e impenetrável . Mas isso era só pra conter a torrente de emoções que era capaz de ter. Sempre tivera medo de inundar-se.
Ele olhava no espelho e via um moleque. Desejava, como todo rapaz da mesma idade, uma namorada bonita, um carro zero e morar sozinho. Mas não queria realmente ser isso: era realista e sabia que a imagem refletida ia ganhar mais pelos, olheiras mais fundas e pele mais seca,  mas seria sempre aquele moleque. Não queria estruturar uma vida de homem. Não queria falar sobre a vida lá fora. Queria só que o deixassem em paz.
Não viviam, senão portavam uma solidão ambígua e traiçoeira. Como uma inflamação na gengiva , era dolorosa e boa ao mesmo tempo. Sentiam, cada um a sua maneira, uma enorme falta. Nas poucas vezes que tentaram consertá-la — tinta no cabelo, aulas de guitarra, beijos com desconhecidos, chocolates belgas— fracassaram. Seus organismos pareciam aceitar interação até um certo ponto. Ele não queria ter de falar com alguém, chamaria quando precisasse. Ela não queria ser de ninguém, mas se emprestaria quando quisesse.

Então, naquele dia, saíram sós. Os acontecimentos que levaram a isso não importam.  Ele, na verdade, não se importava em estar só contanto que ninguém pudesse vê-lo. Luzes, espelhos, vidros e chão escorregadio— shopping centers eram exatamente o que via quando pensava no inferno. Por isso comprara o ingresso pela internet.
A sessão era às 20h40. Pretendia chegar às 20h30. Os dez minutos para subir ao último andar, comprar a pipoca e se sentar alguns instantes depois de as luzes serem apagadas haviam sido previamente calculados. Assim, enquanto ela vagava e divagava na frente de vitrines e fingia procurar livros sobre decoração de bolos na livraria, ele tomava banho e jantava com a mãe.

Quando ela se viu saindo do taxi, a solidão se tornou surpreendentemente incômoda, como a etiqueta de uma camisa que, na loja, não se faz notar, mas , no dia seguinte, arranha a pele e a paciência de quem vestiu. De repente, a camisa que comprara— com estampa de independência e botões muito bem resolvidos— fazia arder a pele.  Por muito tempo desejou que alguém, quem quer que fosse, estivesse lá para segurar sua mão. Arrependeu-se amargamente de estar sob aquelas luzes e não na penumbra do quarto em que dormia. Ela e ele eram mariposas antitéticas:  sempre rodeando cantinhos escuros.
 Ele queria abraçar alguém além da almofada do sofá quando assistia tevê. Ela queria alguém que lhe desse vontade de cantar no chuveiro.  No entanto, sempre que tentavam alcançar isso, tudo parecia esvanecer. Esse ponto, em particular, ele entendia melhor do que ela. Quem nunca reparou que a água num desenho animado parece muito melhor do que a água do mundo real?

Somos desenhados para querer amor, mesmo sem saber como obtê-lo. E  a ilusão do livre arbítrio serve apenas para supervalorizar o a busca. O amor não é sentimento, é instinto.
Um vegetariano escolhe não comer carne, mas o homem precisa de carne. Para todos efeitos, eram vegetarianos de amor. E viviam bem à base de bifes de soja.


A fila da pipoca estava abnormalmente longa.
 Mensagem de texto para um amigo :“Se em uma fileira estivermos só eu e um casal, torça pra eu não encontrar uma caixa de Prozac no armário do banheiro”.
Fileira G:  vazio,vazio,vazio, vazio, vazio, casal, ela, vazio, vazio, vazio, vazio, vazio. As luzes lentamente se apagavam. Um pai, acompanhado de três meninos pequenos, entrou na fileira. Pipoca caindo do pote, barulho de sacola e ela em seu mantra “do meu lado não, do meu lado não, do meu lado não”. Do lado dela, não.  Pegaram a G1,G2,G3 eG 4.
No escuro, a agonia que os afligira no corredor parecia menor. Se não chegasse alguém, ela pretendia pular para a G8 ao seu lado. Assim, ficaria longe do casal e a uma distância segura das crianças. Mas chegou.
As poltronas, lado a lado, como uma lâmpada amarela na varanda em noites de verão, atraíram para si aquelas duas mariposas.
Existe no mundo um sentimento difícil de descrever, mas muito comum. Menos inteligível que a felicidade, mais trêmulo que a paz e mais primitivo que a euforia. É uma realização inconsciente.  Um prazer moderado e gratificante. Um afago interno.
Foi esse afago que sentiram nos segundos antes do filme começar.
Ela ria e ele ria em seguida. Ele se afligia por não poder fazer nada quando, depois de uma explosão ou uma cena de luta, ela se assustava ou cruzava os braços com força. Ela inclinava um pouco a cabeça, nos limites de sua poltrona, como se a apoiasse no ombro dele. Ele temia vê-la chorar a morte de um personagem. Ela, periodicamente, mexia-se, estralando as costas na esperança que ele a olhasse.  E ele queria fazer um comentário engraçado, baixinho, ao pé do ouvido, para forçá-la a ter que conter o riso. Ela e ele sabiam, também, que nada daquilo iria acontecer.
Rolavam os créditos e a sala esvaziava. E a fileira G ainda abrigava as mariposas. Às vezes, quando se apoia um copo de suco aparentemente vazio em uma mesa, por algum tempo, um restinho doce se acumula no fundo. Então apoiaram aquele copo vazio entre os corredores de saída lotados e a tela. Um spoof do próximo filme da saga. Amavam-se.
 Ela levantou e, lentamente, entrou na fila da esquerda. Ele amassou o saco de pipoca vazio e foi pela direita. Jamais veriam o rosto um do outro. Não precisavam ver o rosto um do outro para saber que sorriam.


À sua maneira, aquele amor duraria para sempre.














N.do A. : Agradecimentos especias a Dr. Peanut o editor improvisado, por não entender exatamente o que eu quis dizer, mas me falar.



Nenhum comentário:

Postar um comentário