O homem nasce só e morre só. Sabendo disso, a humanidade criou
os mais diversos subterfúgios para amenizar essa solidão. São como pequenas
peças em que se encena a família, o
casamento, as alianças, clubes, sindicatos, feriados. Todos nós somos os
atores. E a prova maior de que essa vida inventada é um espetáculo inconclusivo
é a morte. É uma última apresentação de temporada sem o ator principal. Velórios são óperas sem
uma prima Donna.
Se é, então, a vida um
espetáculo inventado para plateia
nenhuma, qual seria a razão de fingir?
Haviam passado aquela sexta-feira na cama. Ela, assistindo qualquer coisa que a fizesse esquecer que existia. Ele, jogando videogame.
Por motivos diferentes, eram sós. Tinham família, amigos,
amantes. Mas eram terrivelmente sós ao mesmo tempo em que não lhes fazia
sentido fazer qualquer coisa sozinhos.
Enquanto ele, ao andar só por algum espaço aberto, atendia cegamente às
borboletas que se debatiam em seu abdome e faziam-lhe voltar para casa, ela tinha
vontade de ir ao banheiro. E também de chorar, mas isso não lhe acontecia havia
muito tempo.
Ao ser chamada,
jocosamente, de “coração de pedra” por amigos , parte de si acreditava
realmente não saber ter emoções. Outra parte,porém, aquela que geralmente está
certa mas à qual nunca damos ouvidos, sabia que em seu coração havia um dique,
uma barreira forte, densa e impenetrável . Mas isso era só pra conter a
torrente de emoções que era capaz de ter. Sempre tivera medo de inundar-se.
Ele olhava no espelho e via um moleque. Desejava, como todo
rapaz da mesma idade, uma namorada bonita, um carro zero e morar sozinho. Mas
não queria realmente ser isso: era realista e sabia que a imagem refletida ia ganhar
mais pelos, olheiras mais fundas e pele mais seca, mas seria sempre aquele moleque. Não queria
estruturar uma vida de homem. Não queria falar sobre a vida lá fora. Queria só
que o deixassem em paz.
Não viviam, senão portavam uma solidão ambígua e traiçoeira.
Como uma inflamação na gengiva , era dolorosa e boa ao mesmo tempo. Sentiam,
cada um a sua maneira, uma enorme falta. Nas poucas vezes que tentaram
consertá-la — tinta no cabelo, aulas de guitarra, beijos com desconhecidos,
chocolates belgas— fracassaram. Seus organismos pareciam aceitar interação até
um certo ponto. Ele não queria ter de falar com alguém, chamaria quando precisasse. Ela não queria ser de ninguém, mas se emprestaria quando quisesse.
Então, naquele dia, saíram sós. Os acontecimentos que
levaram a isso não importam. Ele, na
verdade, não se importava em estar só contanto que ninguém pudesse vê-lo.
Luzes, espelhos, vidros e chão escorregadio— shopping centers eram exatamente o que via quando pensava no inferno.
Por isso comprara o ingresso pela internet.
A sessão era às 20h40. Pretendia chegar às 20h30. Os dez
minutos para subir ao último andar, comprar a pipoca e se sentar alguns
instantes depois de as luzes serem apagadas haviam sido previamente calculados.
Assim, enquanto ela vagava e divagava na frente de vitrines e fingia procurar
livros sobre decoração de bolos na livraria, ele tomava banho e jantava com a
mãe.
Quando ela se viu saindo do taxi, a solidão se tornou
surpreendentemente incômoda, como a etiqueta de uma camisa que, na loja, não se
faz notar, mas , no dia seguinte, arranha a pele e a paciência de quem vestiu.
De repente, a camisa que comprara— com estampa de independência e botões muito
bem resolvidos— fazia arder a pele. Por
muito tempo desejou que alguém, quem quer que fosse, estivesse lá para segurar
sua mão. Arrependeu-se amargamente de estar sob aquelas luzes e não na penumbra
do quarto em que dormia. Ela e ele eram mariposas antitéticas: sempre rodeando cantinhos escuros.
Ele queria abraçar alguém além da almofada do sofá quando assistia tevê. Ela queria alguém que lhe desse vontade de cantar no chuveiro. No entanto, sempre que tentavam alcançar isso, tudo parecia esvanecer. Esse ponto, em particular, ele entendia melhor do que ela. Quem nunca reparou que a água num desenho animado parece muito melhor do que a água do mundo real?
Ele queria abraçar alguém além da almofada do sofá quando assistia tevê. Ela queria alguém que lhe desse vontade de cantar no chuveiro. No entanto, sempre que tentavam alcançar isso, tudo parecia esvanecer. Esse ponto, em particular, ele entendia melhor do que ela. Quem nunca reparou que a água num desenho animado parece muito melhor do que a água do mundo real?
Somos desenhados para querer amor, mesmo sem saber como
obtê-lo. E a ilusão do livre arbítrio serve
apenas para supervalorizar o a busca. O amor não é sentimento, é instinto.
Um vegetariano escolhe não comer carne, mas o homem precisa
de carne. Para todos efeitos, eram vegetarianos de amor. E viviam bem à base de
bifes de soja.
A fila da pipoca estava abnormalmente longa.
Mensagem de texto
para um amigo :“Se em uma fileira estivermos só eu e um casal, torça pra eu não
encontrar uma caixa de Prozac no armário do banheiro”.
Fileira G:
vazio,vazio,vazio, vazio, vazio, casal, ela, vazio, vazio, vazio, vazio,
vazio. As luzes lentamente se apagavam. Um pai, acompanhado de três meninos
pequenos, entrou na fileira. Pipoca caindo do pote, barulho de sacola e ela em
seu mantra “do meu lado não, do meu lado não, do meu lado não”. Do lado dela,
não. Pegaram a G1,G2,G3 eG 4.
No escuro, a agonia que os afligira no corredor parecia
menor. Se não chegasse alguém, ela pretendia pular para a G8 ao seu lado.
Assim, ficaria longe do casal e a uma distância segura das crianças. Mas
chegou.
As poltronas, lado a lado, como uma lâmpada amarela na
varanda em noites de verão, atraíram para si aquelas duas mariposas.
Existe no mundo um sentimento difícil de descrever, mas
muito comum. Menos inteligível que a felicidade, mais trêmulo que a paz e mais
primitivo que a euforia. É uma realização inconsciente. Um prazer moderado e gratificante. Um afago
interno.
Foi esse afago que sentiram nos segundos antes do filme
começar.
Ela ria e ele ria em seguida. Ele se afligia por não poder
fazer nada quando, depois de uma explosão ou uma cena de luta, ela se assustava
ou cruzava os braços com força. Ela inclinava um pouco a cabeça, nos limites de
sua poltrona, como se a apoiasse no ombro dele. Ele temia vê-la chorar a morte
de um personagem. Ela, periodicamente, mexia-se, estralando as costas na
esperança que ele a olhasse. E ele queria
fazer um comentário engraçado, baixinho, ao pé do ouvido, para forçá-la a ter
que conter o riso. Ela e ele sabiam, também, que nada daquilo iria acontecer.
Rolavam os créditos e a sala esvaziava. E a fileira G ainda
abrigava as mariposas. Às vezes, quando se apoia um copo de suco aparentemente
vazio em uma mesa, por algum tempo, um restinho doce se acumula no fundo. Então
apoiaram aquele copo vazio entre os corredores de saída lotados e a tela. Um spoof do próximo filme da saga.
Amavam-se.
Ela levantou e, lentamente,
entrou na fila da esquerda. Ele amassou o saco de pipoca vazio e foi pela
direita. Jamais veriam o rosto um do outro. Não precisavam ver o rosto um do
outro para saber que sorriam.
À sua maneira, aquele amor duraria para sempre.
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